domingo, 11 de maio de 2014

Y TENIA CORAZÓN



"O homem erudito é um descobridor de fatos que já existem - mas o homem sábio é um criador de valores que não existem e que ele faz existir."
Albert Eisntein

Conheci esta maravilhosa obra de Simonet por intermédio de um companheiro de LAMEL, o qual sempre colocava como último slide de suas apresentações este fascinante quadro.
Pintado em 1890 pelo artista espanhol Enrique Simonet y Lombardo, Y Tenia Corazón mostra um médico-legista a analisar o coração recém-extraído de uma jovem morta (tuberculose?), a qual jaz sobre uma mesa de autopsia.
É patente no rosto do velho cientista o questionamento ao analisar o órgão segurado em sua mão esquerda. Parece realmente que ele acaba de presenciar não apenas uma descoberta, mas uma revelação. Acredito que sua perspicácia tenha enxergado algo além do coração, além da anatomia, além do comboio de músculos e válvulas, arranjados para bobear a vida. A concentração expressa pela sua fronte e pelo seu olhar demonstra a profunda admiração deste senhor perante os sentimentos da moça (infeliz vítima de uma “mala viba”).
               Sabemos que a tuberculose era na época do quadro uma doença considerada indigna, visto que sua ocorrência era particularmente alta na escória da população, na qual se incluíam aqueles de vida libertina, calcadas nos excessos e na lama que sujava os tavernas e cabarés daquela época. Bom, pelo menos esse era o pensamento vigente naqueles tempos... A mulher morta (jovem, bela, pálida, envolvida por um espectro cândido), não obstante fosse possivelmente uma desregrada, em desconforme com os padrões de moça obediente da época, possuía sentimentos, sonhos e inocência quiçá (tanto que o sábio cientista observa isso...). Afinal, ela tinha um coração! Uma sociedade moralista como aquela, entretanto, amputava tal símbolo de dignidade a qualquer indivíduo mais ou menos desviado do caminho considerado o correto. E somente alguém com experiência, sensibilidade e sabedoria (livre de valores convencionais) seria capaz de diagnosticar um coração naquela jovem considerada de mala vida.

              Artisticamente, a pintura enquadra-se no realismo social, tendo em vista o tratamento que o pintor oferece à obra. A riqueza de detalhes é espantosa, notando-se, assim, a meticulosidade de Simonet ao planejar seu quadro. A bacia com água (a qual reflete a cortina e um pedaço da janela) e uma esponja sobre a mesa são objetos que dominam o canto inferior direito da obra. Nota-se que a mesa está molhada, e que há instrumentos de corte sobre ela.
              No quadrante superior direito há a janela, fundamental para a formação de uma das mais notáveis características da obra: o contraste entre luz e sombra. Pela janela incide a luz do dia, opondo-se ao ambiente escuro da sala e das paredes, bem como com aquela figura de negro mais ao centro da imagem. A vidraçaria sobre o parapeito quebra a uniformidade do meio, além de realçar o espírito científico (a objetividade) que a obra carrega. Chama atenção também o arco de corda, cuja presença realça a minudência da obra.
              Mais ao centro está o corpo da mulher. A beleza, a juventude, os cabelos longos, a inconsciência, a passividade e a nudez são algumas das características mais marcantes da figura. O tórax foi aberto para a retirada do coração, e está coberto por compressas que escondem a cavidade torácica. A região da genitália externa é parcialmente coberta pelo lençol. É possível perceber também a incidência da luz sobre a jovem, e o cuidado do pintor quanto às sombras projetadas pela anatomia de seu corpo (braços, seios, região cervical). Aliás, é a anatomia feminina que merece mais atenção, tendo em vista a perfeição que Simonet dedicou a cada detalhe do corpo. Outro fato interessante é quanto a luminosidade do cadáver, mais evidente que a do cientista, vestido de preto e ocupando uma região mais escura da obra.
Quanto ao médico-legista, posicionado à esquerda do corpo da moça, notam-se alguns fatos referentes a sua condição científica: a vestimenta, o óculos, a barba e os cabelos grisalhos, a idade. Em sua mão esquerda é segurado o coração, objeto que dá título à obra, configurando emoções (subjetividade) à cena retratada. Concernente à anatomia do órgão, é possível observar a base do coração, onde salientam-se alguns vasos, porém, sem muita clareza para definir detalhes de idiotopia.
A mão direita, parcialmente apoiada na mesa de autópsia, segurando o bisturi, parece ajudar  o médico a firmar-se sobre suas pernas, ante o deslumbramento do órgão analisado. Evidencia-se também que o perito não faz uso de aventais ou de luvas, equipamentos de biossegurança que só começavam a ter relevância no final do século XIX e início do século XX.
O canto superior esquerda do quadro é a região mais escura. Há uma lamparina acesa aos pés do que parece ser um crucifixo, objeto muito comum em necrotérios ainda nos dias de hoje. Na parte inferior esquerda, nota-se, sobre a mesa atrás do médico, uma caixa de instrumentais. Mais inferiormente, sobre uma maca de metal, está a assinatura do pintor.
A pintura foi inicialmente chamado de "ela tinha um coração!", vindo só mais tarde receber o nome "Anatomia do Coração." Outra denominação bem famosa para o quadro é "Autopsia".
A pintura possui 177x291cm e atualmente encontra-se no Museu Provincial de Belas Artes de Málaga, Espanha.
Rafael Martinez Pereira Nogueira - Acadêmico de medicina e integrante da LAMEL/UPF
BIBLIOGRAFIA E MAIS INFORMAÇÕES:
  

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