"O homem erudito é um descobridor de fatos que
já existem - mas o homem sábio é um criador de valores que não existem e que
ele faz existir."
Albert Eisntein
Conheci esta maravilhosa obra de Simonet por
intermédio de um companheiro de LAMEL, o qual sempre colocava como último slide
de suas apresentações este fascinante quadro.
Pintado em 1890 pelo artista espanhol Enrique
Simonet y Lombardo, Y Tenia Corazón mostra
um médico-legista a analisar o coração recém-extraído de uma jovem morta
(tuberculose?), a qual jaz sobre uma mesa de autopsia.
É patente no rosto do velho cientista o
questionamento ao analisar o órgão segurado em sua mão esquerda. Parece
realmente que ele acaba de presenciar não apenas uma descoberta, mas uma
revelação. Acredito que sua perspicácia tenha enxergado algo além do coração,
além da anatomia, além do comboio de músculos e válvulas, arranjados para bobear
a vida. A concentração expressa pela sua fronte e pelo seu olhar demonstra a
profunda admiração deste senhor perante os sentimentos da moça (infeliz
vítima de uma “mala viba”).
Sabemos que a tuberculose era na época do quadro
uma doença considerada indigna, visto que sua ocorrência era particularmente
alta na escória da população, na qual se incluíam aqueles de vida libertina,
calcadas nos excessos e na lama que sujava os tavernas e cabarés daquela época.
Bom, pelo menos esse era o pensamento vigente naqueles tempos... A mulher morta
(jovem, bela, pálida, envolvida por um espectro cândido), não obstante fosse
possivelmente uma desregrada, em desconforme com os padrões de moça obediente
da época, possuía sentimentos, sonhos e inocência quiçá (tanto que o sábio
cientista observa isso...). Afinal, ela tinha um coração! Uma sociedade
moralista como aquela, entretanto, amputava tal símbolo de dignidade a qualquer
indivíduo mais ou menos desviado do caminho considerado o correto. E somente
alguém com experiência, sensibilidade e sabedoria (livre de valores
convencionais) seria capaz de diagnosticar um coração naquela jovem considerada
de mala vida.
Artisticamente, a pintura enquadra-se no
realismo social, tendo em vista o tratamento que o pintor oferece à obra. A
riqueza de detalhes é espantosa, notando-se, assim, a meticulosidade de Simonet
ao planejar seu quadro. A bacia com água (a qual reflete a cortina e um pedaço
da janela) e uma esponja sobre a mesa são objetos que dominam o canto inferior
direito da obra. Nota-se que a mesa está molhada, e que há instrumentos de corte
sobre ela.
No quadrante superior direito há a janela,
fundamental para a formação de uma das mais notáveis características da obra: o
contraste entre luz e sombra. Pela janela incide a luz do dia, opondo-se ao
ambiente escuro da sala e das paredes, bem como com aquela figura de negro mais
ao centro da imagem. A vidraçaria sobre o parapeito quebra a uniformidade do
meio, além de realçar o espírito científico (a objetividade) que a obra
carrega. Chama atenção também o arco de corda, cuja presença realça a
minudência da obra.
Mais ao centro está o corpo da mulher. A beleza,
a juventude, os cabelos longos, a inconsciência, a passividade e a nudez são
algumas das características mais marcantes da figura. O tórax foi aberto para a
retirada do coração, e está coberto por compressas que escondem a cavidade
torácica. A região da genitália externa é parcialmente coberta pelo lençol. É
possível perceber também a incidência da luz sobre a jovem, e o cuidado do pintor
quanto às sombras projetadas pela anatomia de seu corpo (braços, seios, região
cervical). Aliás, é a anatomia feminina que merece mais atenção, tendo em vista
a perfeição que Simonet dedicou a cada detalhe do corpo. Outro fato
interessante é quanto a luminosidade do cadáver, mais evidente que a do cientista,
vestido de preto e ocupando uma região mais escura da obra.
Quanto ao médico-legista, posicionado à esquerda do corpo da moça, notam-se alguns fatos referentes a sua condição científica: a vestimenta, o óculos, a barba e os cabelos grisalhos, a idade. Em sua mão esquerda é segurado
o coração, objeto que dá título à obra, configurando emoções (subjetividade) à
cena retratada. Concernente à anatomia do órgão, é possível observar a base do
coração, onde salientam-se alguns vasos, porém, sem muita clareza para definir
detalhes de idiotopia.
A mão direita, parcialmente
apoiada na mesa de autópsia, segurando o bisturi, parece ajudar o médico a firmar-se sobre suas pernas, ante o deslumbramento do órgão analisado. Evidencia-se também que o perito
não faz uso de aventais ou de luvas, equipamentos de biossegurança que só
começavam a ter relevância no final do século XIX e início do século XX.
O canto superior esquerda do
quadro é a região mais escura. Há uma lamparina acesa aos pés do que parece ser
um crucifixo, objeto muito comum em necrotérios ainda nos dias de hoje. Na parte inferior esquerda, nota-se, sobre a mesa atrás do
médico, uma caixa de instrumentais. Mais inferiormente, sobre uma maca de
metal, está a assinatura do pintor.
A pintura foi inicialmente
chamado de "ela tinha um
coração!", vindo só mais tarde receber o nome "Anatomia do Coração." Outra denominação bem famosa
para o quadro é "Autopsia".
A pintura possui 177x291cm e atualmente encontra-se no Museu Provincial de Belas Artes de Málaga, Espanha.
Rafael Martinez Pereira Nogueira - Acadêmico de medicina e integrante da LAMEL/UPF
BIBLIOGRAFIA E MAIS INFORMAÇÕES:
- MOSCOSO, Javier. Famous Paintings: "Anatomy of the Heart" by Enrique Simonet y Lombardo. Disponível em: http://symbolreader.net/2014/02/26/famous-paintings-anatomy-of-the-heart-by-enrique-simonet-y-lombardo/. Acesso em: 11 mai. 2014.
- MURO, Juan. Y Tenía Corazón. Disponível em: http://eldibujante.com/?tag=enrique-simonet-y-lombardo. Acesso em: 11 mai. 2014.
- HERNÁNDEZ, Luis. Y Tenía Corazón. Disponível em: http://eldibujante.com/?tag=enrique-simonet-y-lombardo. Acesso em: 11 mai. 2014.
- MARTINS, Ana Paula Vosne. O Pintor, O médico e A Mulher: códigos visuais e de gênero na pintura de tema médico. Genero. Niterói, v. 10, n. 2, p. 107-123. sem. 2010.
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