sexta-feira, 11 de julho de 2014

Fazer sexo com alguém bêbado é estupro?



Estupro de Vulnerável

Saiu no jornal Folha de São Paulo (19/6/11):

“A polícia de São Paulo prendeu ontem um bombeiro civil suspeito de ter estuprado uma jovem de 20 anos dentro da boate Kiss and Fly, na zona sul de São Paulo.
A vítima é uma estudante que estava no local acompanhada pela irmã, 22. Segundo relato delas à polícia, enquanto a irmã mais velha pagava a conta, por volta das 5h, a mais jovem dirigiu-se ao ambulatório, que fica dentro da boate, por estar embriagada, passando mal.
Um bombeiro de 32 anos, que estava no ambulatório, propôs ajudá-la levando-a ao banheiro para lavar o rosto. No banheiro, porém, ele teria estuprado a garota -que estaria semiconsciente.
Quando a irmã chegou ao ambulatório, foi informada da violência pela jovem e chamou a polícia. Levado à delegacia, o bombeiro confirmou ter mantido relações com a jovem, mas afirmou que o ato foi consensual (...)
O homem foi preso em flagrante pela polícia sob suspeita de estupro de vulnerável - quando a vítima não é capaz de defender-se.”

Essa matéria serve de exemplo para falarmos de um assunto muito importante: o estupro de vulnerável.

Esse é um crime novo no Brasil (foi criado em agosto de 2009) e está no Código Penal (art. 217-A), que diz que é crime “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. Em outras palavras, fazer sexo com alguém menor de 14 anos é estupro de vulnerável. Reparem que a lei não diz que precisa ser contra a vontade da vítima. Por exemplo, o art. 213, que é o que trata do estupro (comum) diz que é estupro “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A palavra constranger significa ‘forçar’. Mas se você reler acima, verá que no estupro de vulnerável não existe a palavra 'constranger'. Basta fazer sexo. A pessoa menor de 14 anos até poderia querer e pode ter sido quem tomou a iniciativa. Não importa: ela(e) tinha menos de 14 anos e por isso, para a lei brasileira, não tinha capacidade de saber o que estava fazendo. Por isso era vulnerável.

Opa, mas a matéria do jornal acima diz a que a vítima tinhe 20 anos. Então como é que seu agressor pode ter sido preso sob a suspeita de estupro de vulnerável?

Porque o §1o do artigo 217 que também é estupro de vulnerável fazer qualquer tipo de sexo (vaginal, oral, anal etc, seja entre heterossexuais ou homossexuais, masculinos ou femininos) “com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.

Aqui precisamos dividir nossa atenção em três pontos distintos:

A lei está falando que fazer sexo com alguém deficiente mental – de qualquer idade – é crime de estupro de vulnerável. Assim como no caso do menor de 14 anos, o deficiente mental, para a lei brasileira, não tem poder de discernimento suficiente para poder consentir em um ato sexual. Logo, ainda que ele(a) queira, peça ou tome a iniciativa, para a lei isso não importa: ele(a) terá sido vítima do estupro. E como ele é vulnerável, será um estupro de vulnerável.

E se ambos forem deficientes mentais? Nesse caso nenhum dos dois é punível porque, de acordo com a lei brasileira, nenhum deles sabia o que estava fazendo. Se a intenção da lei é proteger o vulnerável, não seria lógico puni-los. Mas se alguém responsável organizar ou facilitar que isso aconteça, quem organizou poderá responder por estupro de vulnerável, ainda que ele(a) mesmo não tenha feito sexo.

O mesmo parágrafo da lei fala que fazer sexo com quem está enfermo é crime é estupro de vulnerável. Aqui não é o caso de alguém fazer sexo com alguém com dor de dente ou uma febre. A lei tenta proteger quem está seriamente enfermo. O exemplo que quase todo mundo vai lembrar é o da personagem de uma Uma Thurman no filme Kill Bill, parte 1, em que ela está em coma (ou seja, enferma), e um dos enfermeiros a 'aluga' para sexo. Isso é estupro de vulnerável porque ela não tem capacidade de dizer o que quer ou o que não quer. A lei não diz o que ela vai considerar ‘enfermo’ (isso fica por conta do magistrado), mas a ideia é proteger quem não pode se proteger porque está doente. A mesma coisa ocorreria se alguém fizesse sexo com uma pessoa que está com uma perna quebrada ou sem voz: como ela vai fugir ou pedir socorro ou dizer 'não'?

Por fim, e esse é o ponto pertinente à matéria acima, a lei diz que é estupro de vulnerável fazer sexo com quem “por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. Como com os enfermos, aqui a lei não faz uma lista dos casos possíveis, mas ela diz ao magistrado que ele deve condenar sempre que alguém não está sob controle de suas faculdade mentais, físicas ou emocionais. E alguém que está alcoolizado (ou drogado) certamente não está sob controle de suas faculdade mentais. Para deixar claro: fazer sexo com alguém bêbado (ou drogado) é estupro. Qualquer tipo de sexo (vaginal, oral, anal etc). Essas pessoas, segundo a lei, não sabem o que estão fazendo. Reparem que o suspeito, na matéria acima, diz que a sua vítima consentiu. Isso não importa. Não funciona como defesa porque ela estava embriagada e é o mesmo caso do menor de 14 anos ou do deficiente mental: eles não têm capacidade de consentir. Estão vulneráveis.

E se ambos estiverem bêbados? Se um dos bêbados induziu o outro a beber, quem induziu premeditou e por isso cometeu o crime (é o que os juristas chamam de dolo direto e com embriaguez predeterminada). A mesma coisa ocorre se um deles previu o risco mas achou que não aconteceria, mas acabou acontecendo (em juridiquês chama-se isso se chama dolo eventual). Mas se ambos ficaram bêbados sem querer (em juridiquês, 'caso fortuito'), aí não há estupro.

(Coluna Para entender direito, Folha de S. Paulo)

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